O problema da apostasia - Nós, vós e eles.

Data publicação 03/08/2020

O problema da apostasia - Nós, vós e eles.

Uma breve reflexão em Hebreus 6

Pastor Washington Roberto Nascimento

Este é um texto bíblico desafiador em termos de exegese e hermenêutica. Creio que para um entendimento do texto de Hebreus 6:1-12, precisamos levar em consideração Hebreus 5:11-14 e Hebreus 10:26-31.

Em Hebreus 5:11, temos o pronome ὅς que é um pronome relativo e também demonstrativo no Grego. A tradução: a cerca disso, ou a esse respeito - é aceitável. “Isso” se refere ao sacerdócio de Jesus Cristo segundo a ordem de Melquisedeque.

O escritor bíblico quer ensinar aos seus leitores algo mais profundo da fé Cristã que tem suas raízes no Antigo Testamento (Gn. 14:17-24; Sl. 110:4; Hb. 5:10; 6:20; 7:1-21), mas o problema é que eles são lentos, preguiçosos para aprender. O adjetivo traduzido por “lentos” ou “preguiçosos” ou “negligentes” – νωθρός – só aparece duas vezes no Novo Testamento: Hebreus 5:11 e 6:12. E, é muito triste pegar uma tradução em Português e ver duas palavras diferentes em nossa língua usadas para traduzir a mesma palavra no original grego dentro do mesmo contexto. O certo seria usar uma só palavra em Português para as duas ocorrências da mesma palavra no original que aparece no mesmo texto.

Em Hebreus 5:11, o verbo traduzido por: “se tornaram”, em grego é γίνομαι, e se encontra no tempo Perfeito do Indicativo Ativo em Grego. Isso significa uma ação ou estado completo que gera um estado permanente. Isto significa dizer que eles eram lentos e preguiçosos e continuam do mesmo jeito. Não se trata, portanto, de algo diferente do que existiu antes. Não trata de tempo passado simples. Não. Trata-se de algo atual, presente que já existia no passado. Uma boa tradução seria: Vocês são lentos.

Em Hebreus 5:12, o escritor bíblico nos ensina que a maturidade cristã não se encontra relacionada com a longevidade, como seria normal se pensar. O tempo passou e aqueles cristãos já deveriam ser mestres, mas ainda são crianças espirituais. Receio que esse seja um sério problema em nossas igrejas ainda hoje e, porque não dizer, até mesmo entre alguns líderes.

Em Hebreus 5:12, a expressão traduzida por: “princípios elementares da Palavra de Deus” - στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ - poderia ser, em uma tradução livre, dinâmica e equivalente: o ABC da vida Cristã. A expressão: τῶν λογίων τοῦ θεοῦ, pode ser entendida em um sentido mais literal como as revelações de Deus no Antigo Testamento sobre a pessoa de Jesus Cristo. Os oráculos de Deus.

Em Hebreus 6:1-2, o escritor bíblico faz referência a mesma ideia de Hebreus 5:12, o ABC da vida Cristã, de maneira mais explicativa. A expressão grega usada por ele em Hebreus 6:1 é equivalente, portanto, a Hebreus 5:12 - τῆς ἀρχῆς τοῦ Χριστοῦ λόγον – o princípio da palavra de Cristo, da revelação de Cristo, do ensino de Cristo.

Em Hebreus 5:12-14, o escritor bíblico fala de dois tipos de alimento: o leite e o alimento sólido. Não há coisa alguma errada em tomar leite. Mas um jovem de 20 anos ou um homem de 40 viver apenas tomando leite, isso é simplesmente ridículo e repugnante.

Há uma palavra muito interessante em Hebreus 5:14, τελείων que vem de τέλειος. Trata-se de um adjetivo em grego que está no plural. O significado da palavra é: alcançar o alvo, o fim, a maturidade, a eficácia da capacidade, faltando nada necessário para ser completo; perfeito. O escritor apresenta algumas características desse crente que alcançou a maturidade: 1. Tem alimento sólido; 2. faz uso correto de seus sentidos; 3. é capaz de discernir o bem do mal, tanto em termos doutrinários quanto em termos éticos. O escritor bíblico espera que seus leitores prossigam nesta direção, que tenham esse alvo.

Hebreus 6:1-12 tem relação com Hebreus 10:26-31. Estes dois textos são sérias advertências bíblicas contra a apostasia, o risco de abandonar ou renunciar a fé, uma vida de confiança em Deus e no Seu caráter amoroso, justo e santo, e não simplesmente da renúncia de uma doutrina.

Não há como negar os exemplos bíblicos de pessoas que se apostataram da fé no Novo Testamento: Judas Iscariotes e Demas, pelo menos (Jo. 13:21-30; II Tm. 4:10).

Em Hebreus 6:6 há uma palavra grega: παραπίπτω - traduzida por cair, recair ou apostatar-se. Ela aparece apenas em Hebreus 6:6 - παραπεσόντας (na forma verbal, no aoristo, particípio, ativo,  acusativo, masculino, plural)– e além dos significados acima colocados, este verbo tem a ideia de falhar, sair dos caminhos do Senhor e entrar nos caminhos dos ímpios. Este termo grego só ocorre aqui em Hebreus 6:6 e é diferente do termo em I Timóteo 4:1 - ἀποστήσονταί que vem  ἀφίστημι  que significa: se afastar, partir, deixar, cair fora. Esta palavra na Carta a Timóteo aparece 14 vezes no Novo Testamento, mas apenas nesta Carta a Timóteo ela tem o sentido de afastar-se da fé em Deus e/ou da doutrina correta de Deus, para seguir um caminho diferente. Podemos dizer que o sentido de Paulo não se encontra totalmente diferente do escritor da Carta aos Hebreus, porém os contextos das Cartas são diferentes.

Há três pronomes pessoais muito importantes neste texto de Hebreus 5:11-6:12, que são: nós, vós e eles. Esta observação é digna de nota, pois lança luz para uma exegese e hermenêutica alicerçada na palavra, na gramática, no texto.

Todas as vezes que o verbo aparece na primeira pessoa do plural a ideia é dos crentes maduros, exemplares (Hb. 5:11; 6:1, 3, 9, 11). Quando aparece o verbo na segunda pessoa do plural a ideia é de crentes acomodados, infantis (Hb. 5:11, 12; 6:9, 10, 11, 12). Quando aparece o verbo na terceira pessoa do plural a ideia é de crentes nominais, pessoas que nunca foram crentes ou que correm o risco de se apostarem como crentes, falando hipoteticamente (Hb. 6:1-12 há verbos no nominativo e acusativo plural indicando claramente terceira pessoa plural), seguiam o povo de Deus, viram as maravilhas operadas por Deus, semelhante aquelas pessoas que foram libertas da escravidão do Egito, mas que não se converteram, mas criaram problemas e dificuldades para Moisés, o servo de Deus, ao longo da peregrinação. Foram tirados da escravidão (das trevas), mas a escravidão (as trevas) sempre existiu dentro deles. Neste último caso podemos incluir Judas, Demas e, possivelmente, Simeão (At. 8:9-25).

O texto de Hebreus 6:1-2 traz doutrinas sobre as quais judeus e cristãos aceitavam de comum acordo, mas tudo indica que são doutrinas do judaísmo, incluindo os batismos (lavagens, purificações), que os cristãos primitivos por serem judeus acabaram abraçando.

O texto de Hebreus 6:3, isso faremos se Deus permitir, significa: nós prosseguiremos para a maturidade cristã que foi referida em Hebreus 6:1, com a ajuda de Deus, se Deus quiser. Este condicional no grego é retórico e significa: e Deus quer.

A expressão: é impossível, em Hebreus 6:4, precisa ser considerada à luz da gramática: os diferentes pronomes em especial: nós, vós e eles; e, também, precisa ser considerada à luz do contexto histórico: os cristãos estavam sendo perseguidos pelo Império Romano e pelo Judaísmo, o templo ainda não havia sido destruído, o que só aconteceu no ano 70 AD, e os sacrifícios continuavam acontecendo normalmente (Hb. 10:1). Vários judeus cristãos estavam abandonando a Jesus como o Cristo, o Messias de Deus, o prometido nas Escrituras (veja Hebreus 10:23-25).

A palavra: impossível -   ἀδύνατος que no texto grego encontra-se no acusativo: Ἀδύνατον), aparece não apenas em Hebreus 6:4, mas, também, em Hebreus 6:18; 10:4, e 11:6. Em todas essas ocorrências o sentido não é difícil, duro, mas impossível mesmo. Não temos como suavizar ou mudar o sentido da palavra ἀδύνατος – impossível -  nesta Carta aos Hebreus.

Esses judeus cristãos haviam experimentado todas as bênçãos espirituais listadas em Hebreus 6:4-5, por isso, de uma maneira contundente, o escritor bíblico diz de maneira dura, é verdade, na esperança de livrar tais judeus cristãos da apostasia, que seria impossível a renovação dos mesmos para arrependimento, caso caíssem, isto é, se afastassem do Caminho que é Jesus Cristo, da comunhão com Ele, o Messias de Deus, pois haviam sido iluminados, provaram o dom celestial, se tornaram participantes do poder do Espírito Santo, da boa Palavra de Deus e também do poder do tempo que virá da eternidade.

Essa situação de uma pessoa cuja salvação se torna não realizável tem seu paralelo em Marcos 3:29, quando o Senhor Jesus Cristo disse que aquele que blasfemasse contra o Espírito Santo não teria perdão, e, também, faz-nos lembrar da parábola do semeador que Jesus contou, daqueles solos que receberam a Palavra, mas que por diferentes motivos a palavra não frutificou (Mt. 131-23).

Sem dúvida, a parábola do semeador em Mateus 13 nos ajuda a entender este texto de Hebreus, pois fala de solos, pessoas, que não apenas receberam a Palavra, mas a receberam com alegria (Mt. 13:20), mas que depois de certo tempo algo aconteceu, as coisas mudaram, as pessoas caíram, se afastaram, abandonaram tudo.

Além disso, podemos citar Mateus 7:21-23, que também tem relação com o texto de Hebreus. O texto de Mateus 7 diz que quando o Senhor voltar, algumas pessoas que conheceram o poder da Sua Palavra, do Seu Espírito, de Seu dom, mas que não se converteram de verdade, pois praticavam simultaneamente a iniquidade, terão uma triste surpresa. Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive com prazer pecando, Deus que vive nele o protege da destruição do Maligno (I Jo. 5:18).

Em síntese, o escritor da Carta aos Hebreus está tentando nos ensinar que a perseverança e o estilo de vida são cruciais como elementos essenciais de nossa salvação.

O arrependimento e a fé precisam produzir frutos (Ef. 2:8-10). A salvação implica na relação pessoal com Deus através de Jesus, marcada pelo arrependimento e a fé.

Para aquelas pessoas que confiam no amor de Deus e em Sua maravilhosa graça, mas vivem na carne e com prazer no pecado, esse texto de Hebreu é um grito de alerta: Não faça isso, seu louco!

Em Hebreus 6:7-8, nós temos um parêntesis, isto é, uma informação acessória. Isso parece ter como background Isaías 5:1-2. O Senhor lavrou a terra, a terra estava preparada para receber a semente e dar fruto de justiça, do Espírito, mas espinhos apareceram, o que aponta, de certa forma, para a rebelião do homem contra Deus e daquilo que a terra produziria por causa do pecado (Gn. 3:18).

Em Hebreus 6:9, o escritor bíblico diz: “o que falamos nos versos de 4 a 6 não se aplica a vocês, meus amados irmãos”. Aqui nós podemos ver claramente a importância de separarmos neste texto os grupos com base nos pronomes: nós, vós e eles.

Outra coisa importante em Hebreus 6:9 é a referência que o escritor bíblico faz a respeito das coisas pertencentes a salvação, que são: arrependimento e fé, perseverança, e estilo de vida à semelhança de Jesus Cristo. Na verdade, o escritor bíblico de Hebreus fala sobre isso em todo o seu livro.

Hebreus 6:10 fala da justiça e fidelidade de Deus, ele não se esquece de nosso trabalho e amor em Seu favor, em favor de Seus servos. Por isso, nós, os crentes, podemos perseverar na obra do Senhor, embora nossa motivação não deva ser a recompensa que teremos, pois até a recompensa de Deus é produto de Sua graça. Nossa motivação  é o amor dele a nós, tudo que Ele é e tem feito por nós.

Hebreus 6:11 fala da importância da perseverança e o versículo 12 repete a palavra νωθρός de Hebreus 5:11, que significa: lento, indolente, negligente, lerdo, estúpido. Em Hebreus 5:11, o escritor bíblico diz que seus leitores são negligentes, mas agora, aqui em Hebreus 6:12, ele diz, no aoristo subjuntivo em grego, que aponta para um evento futuro que ele almeja: “não sejam negligentes, mas (um partícula adversativa) imitadores daqueles que pela fé e pela paciência herdam as promessas”.

A doutrina da salvação eterna na Bíblia não se encontra separada da doutrina da perseverança dos crentes até o fim. A graça de Deus revelada em Jesus Cristo não apenas nos salva, mas nos sustenta e nos transforma a Sua imagem a cada dia até o dia final.

Pastor Washington Roberto Nascimento.